A cura de carnes refere-se ao processo no qual a carne fresca é tratada com sal comum ou com uma combinação de sal, sais de cura e coadjuvantes, com o objetivo principal de preservar a carne, prolongando a sua vida útil e aprimorando o seu sabor.
Esse processo visa atenuar ou anular a ação enzimática e o desenvolvimento de microrganismos, mantendo, o máximo possível, as suas qualidades nutritivas e organoléticas, colaborando com o aroma, o sabor e, na presença de nitrito, com a cor vermelha ou rosácea.
Os termos “salga” e “cura”, ou “salgado” e “curado”, têm, para alguns, o mesmo significado. De forma rigorosa, entende-se como “cura” o tratamento da carne apenas com a participação exclusiva do sal como ingrediente. No entanto, atualmente, se enquadra nessa mesma classificação o tratamento da carne com o sal (como ingrediente de maior abundância) e os nitritos, pois essa combinação visa garantir com mais eficiência suas características de conservação, como manter a cor e proporcionar uma proteção mais adequada contra microrganismos anaeróbicos.
Ao explorar os conhecimentos do universo da charcutaria, nos deparamos com uma outra classificação adicional de grande relevância: o chamado “tripé da cura”. Esse tripé é composto pelo sal, juntamente com o nitrito e o açúcar, que juntos constituem os três ingredientes-chave para uma cura tradicional.
Vamos agora analisar o comportamento e a função de cada um desses principais ingredientes no processo de cura:
SAL – O sal é o primeiro, considerado o ingrediente mais importante. Ele desempenha papéis essenciais na charcutaria, atuando como ligante, saborizador e preservador. Em relação à ligação, o sal tem a capacidade de extrair as proteínas miofibrilares, solubilizando a actina e a miosina, o que contribui para a emulsificação da gordura e aumenta a capacidade de retenção de água na carne. Além disso, o sal possui ação bacteriostática, inibindo o crescimento microbiano ao elevar a pressão osmótica do meio, resultando na redução da atividade de água.
NITRITO – O nitrito vem logo depois, como segundo ingrediente importante, responsável pela cor e segurança do produto. Ele é responsável pela reação com o pigmento ferroso da mioglobina, resultando na formação da cor vermelha brilhante. No entanto, essa reação permanece instável até que a carne seja tratada e submetida ao calor. A cor da reação só se estabiliza após o tratamento térmico, quando ocorre a desnaturação da porção proteica da mioglobina. Isso resulta no pigmento de cor rosada brilhante, característico da carne curada cozida. É por isso que a carne curada mantém sua coloração rosada ou avermelhada, enquanto a carne fresca, quando cozida, tende a adquirir tonalidades acinzentadas ou marrons.
O fenômeno da fixação da cor, bastante complexo, tem o seguinte esquema simplista representado:
- Nitritos + bactérias = óxido nítrico
- Óxido nítrico + mioglobina = nitrosomioglobina
- Nitrosomioglobina + calor = nitrosohemocromo
Se pararmos para refletir, a grande maioria dos produtos de charcutaria apresentam tonalidades rosadas e avermelhadas, como salames, presuntos, pastramis, mortadelas, pepperonis, linguiças, bacon, copas, capocollos, pancettas, chouriços, salsichões, lombinhos defumados, guanciales e salsichas curadas, entre outros.
Contudo, além da cor, o aspecto mais importante é garantir a segurança alimentar do produto. O nitrito desempenha um papel de inibição dos Clostrídios, interferindo diretamente sobre as enzimas respiratórias das bactérias anaeróbicas que possuem ferro e enxofre em sua estrutura. Essa interação interfere tanto na germinação quanto na multiplicação dos esporos de Clostridium botulinum, inativando suas ligações essenciais. Por esse motivo, o nitrito é considerado um ingrediente chave para garantir a segurança alimentar, inibindo o crescimento de agentes patogênicos.
AÇÚCAR – O açúcar, por sua vez, é o terceiro e último ingrediente do “tripé da cura”. Ele desempenha um papel importante na cura de carnes, atuando como redutor, antioxidante e como fornecedor da base para as bactérias fermentadoras durante o processo de maturação. Ele pode ser obtido de diversas fontes, como sacarose (açúcar de cana), glicose, dextrose, lactose, frutose, mel, xarope de glicose ou até edulcorantes.
Como redutor, o açúcar influencia na redução do pH, tornando o meio desfavorável para o crescimento de microrganismos proteolíticos.
Como antioxidante, auxilia na prevenção ou retardo da oxidação, evitando que as moléculas de oxigênio reagem com substâncias presentes na carne, resultando em alterações indesejáveis na cor, deterioração do sabor e odor desagradáveis. Além disso, o açúcar é fermentado pelas bactérias presentes na carne, resultando na formação de ácidos lácticos, que favorecem o processo de maturação de produtos como salames, copas, guanciale e maturados.
Também contribui para equilibrar o sabor, reduzindo a percepção do sal, e contribui para a formação de cor, incluindo a reação de Maillard. Essa reação ocorre quando o açúcar presente na superfície da carne interage com os aminoácidos provenientes das proteínas, especialmente em altas temperaturas, como no processo de defumação. Durante essa interação, diversas reações químicas complexas acontecem, resultando em uma espécie de caramelização na superfície da carne, proporcionando uma cor dourada ou amarronzada agradável.
É importante ressaltar que os açúcares utilizados na cura de carnes não possuem uma ação conservadora direta. Eles funcionam como conservadores apenas em altas concentrações, onde tornam a água indisponível para o desenvolvimento de bactérias, bolores e leveduras, contribuindo assim para a preservação do produto.
Apesar de o “tripé da cura” considerar o sal, o nitrito e o açúcar como agentes principais, é importante não deixar de considerar os ingredientes coadjuvantes. As especiarias desempenham um papel importante nos produtos cárneos curados, contribuindo para a preservação e agregando valor ao produto final. Além de prolongar a vida útil da carne, as especiarias também são responsáveis pelo desenvolvimento de sabores característicos, texturas atraentes e cores vibrantes. Portanto, ao embarcar na jornada da charcutaria, procure se aprofundar no conhecimento, buscar orientação e seguir os procedimentos corretos para desfrutar dos benefícios de que uma boa cura de carnes.
Em conclusão, a cura de carnes é um processo que busca alcançar produtos cárneos curados de alta qualidade, fazendo uso de ingredientes variados. A combinação cuidadosa desses elementos resulta em produtos com características únicas. A charcutaria, com suas técnicas tradicionais e conhecimentos transmitidos ao longo dos séculos, continua a ser uma arte culinária valiosa, preservando o sabor e a tradição em cada pedaço meticulosamente preparado. É um método de preservação que atravessa gerações, permitindo que apreciemos a riqueza de sabores, que os produtos de charcutaria têm a nos oferecer.